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PROCESSO PARECER CONSULTA Nº 24/2020

PARECER CREMERJ Nº 12/2022

 

INTERESSADOS: Dra. M.A.F.D.L. (Protocolo: 10336520/2020)

ASSUNTO: Questionamento se um(a) médico(a) do Sistema Único de Saúde (SUS) deve informar aos seus pacientes sobre a existência de exames para o seu diagnóstico e que não estejam disponíveis na rede conveniada ao SUS, solicitando tais exames e orientando os pacientes sobre os meios de acesso a eles.

RELATOR: Conselheiro Antonio Abílio Pereira de Santa Rosa

 

EMENTA: O médico da rede pública, diante de um paciente que se beneficiaria de um exame diagnóstico não oferecido pela rede conveniada ao SUS, tem a obrigação de esclarecer o paciente sobre a existência do exame e solicitá-lo se for necessário, no pleno exercício de sua autonomia, para diagnóstico ou acompanhamento da evolução de determinado quadro clínico. A solicitação de qualquer exame é papel do médico, cabendo ao paciente devidamente orientado, decidir pela melhor estratégia a seguir.

 

 

DA CONSULTA

Trata-se de consulta formulada pela Dra. M.A.F.D.L.,  questionando se no contexto de pacientes acompanhados no Sistema Único de Saúde (SUS), deve o médico informar aos pacientes sobre a existência de exames disponíveis para o seu diagnóstico, ainda que esses exames não estejam disponíveis na rede conveniada ao SUS, e se seria papel do médico solicitar tais exames, orientando os pacientes sobre como ter acesso a eles - utilizando recursos como a judicialização - ou estimulando-os a utilizarem recursos próprios para sua realização.

 

 

DO PARECER

O questionamento da médica consulente embute em sua origem um dos principais problemas enfrentados pelos médicos em seu trabalho diuturno -  atendendo, examinando e prescrevendo aos pacientes - que é a discrepância entre o que seria uma conduta adequada a se tomar diante de uma dada situação clínica, observada em um paciente sob seus cuidados, e o que de fato é possível ser encontrado; factível de ser concretizado.

 

Em outras palavras: a diferença entre uma abordagem considerada ideal, por estar sedimentada na literatura especializada, variando ela de livros-texto até artigos de grande qualidade, publicados em revistas científicas de alto impacto, e o chamado “mundo real”, onde métodos diagnósticos, muitas vezes imprescindíveis para a elucidação de uma suspeita clínica ou para o acompanhamento da progressão de uma enfermidade letal ou incapacitante, não se encontram disponíveis ou são inexistentes naquele ambiente de trabalho. O mesmo se dá nos casos onde a literatura indica um tratamento como sendo o mais adequado, ou mesmo o único disponível, para um paciente sob seus cuidados e a disponibilidade do mesmo inexiste.

 

Tais situações normalmente causam considerável inquietação nos médicos assistentes, na medida em que de fato eles estejam empenhados na obtenção de diagnósticos ou dos melhores tratamentos para seus pacientes. Pode acontecer tanto na prática assistencial pública como na privada. O ponto em comum é a impossibilidade ou grande dificuldade, por parte dos pacientes, em se conseguir os métodos diagnósticos ou os tratamentos por meios próprios, dependendo para isso de planos de saúde, quando os possuem. Quando essa possibilidade inexiste, o sistema público de saúde se constitui na única alternativa.

 

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado a partir da Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, a qual, em seu artigo 7º, dispõe:

 

Art. 7º: As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;

III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;

IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;

V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;

VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; [...] (BRASIL,1990, grifo nosso)

 

O dever de informação é de responsabilidade intransferível do médico assistente, cabendo a ele se valer do conhecimento adquirido em sua formação e de sua experiência clínca para exercer essa atribuição da melhor forma disponível ao seu alcance. Essa é a verdadeira essência do trabalho médico de qualidade e não se admite um profissional médico agir sem ter a melhora do  paciente à sua frente como seu objetivo primordial. Se para tanto, é preciso prescrever exames diagnósticos ou tratamentos específicos, deve fazê-lo no pleno execício da Medicina para a qual se preparou e se dedica em seu trabalho.

 

Caso a efetiva realização de exames especializados ou de tratamentos específicos não seja factível para a realidade do paciente ou da instituição onde trabalhe, médicos devem esclarecer seus pacientes da melhor forma possível e orientá-los a procurar alternativas viáveis para sua obtenção, sob pena de infringirem o Código de Ética Médica em seus artigos 20 e 32, que vedam ao médico:

 

Art. 20. permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade. [...]

 

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente (CFM, 2018)

 

A natureza das referidas alternativas varia para cada caso em particular, conforme a doença em questão, o local e a natureza do vínculo do paciente com o sistema de saúde, seja público ou suplementar.

 

No caso em tela, a médica faz o questionamento relacionado ao Sistema Único de Saúde. Sabidamente, o SUS conta com unidades de atendimento nos três níveis de atenção: Baixa, Média e Alta Complexidade e com profissionais capacitados nos seus quadros. O problema crônico observado no sistema frequentemente reside na falta de recursos tecnólógicos e humanos disponíveis em número adequado para o suprimento da demanda incessante. Os sistemas de regulação municipais e estaduais com Referência e Contrarreferência visam a organizar e a dar conta dos atendimentos, mas nem sempre o fazem a contento, havendo filas para a realização de diversos procedimentos e colocando os profissionais sob pressão constante. Nesses casos, é prática comum que se peça exames diagnósticos visando sempre ao benefício de seus pacientes e à celeridade na obtenção dos resultados, mesmo que por vezes eles acabem sendo realizados fora da instituição onde são solicitados.

 

Quando a questão é relacionada a exames não padronizados e indisponíveis na rede conveniada do SUS, o mesmo raciocínio se aplica, embora o problema maior seja de outra ordem. Em várias áreas da Medicina, áreas essas, diga-se de passagem, existentes em hospitais do SUS e exercidas por profissionais do SUS, o conhecimento científico avança com muito mais rapidez do que a velocidade de incorporação desses avanços na rede pública, criando uma possível e injusta distinção entre a existência dos referidos métodos diagnósticos e terapêuticos na rede privada e disponível aos usuários de planos de saúde e clientes da Saúde Suplementar, e a demora na incorporação dos mesmos pelo SUS, com os consequentes e indefectíveis  prejuízos à assistência dos pacientes na esfera pública.

 

O Ministério da Saúde conta com setores específicos a arbitrar sobre a incorporação de novas tecnologias em saúde no sistema. Tais decisões se baseiam em informações técnicas norteadas pela limitação de recursos financeiros, sempre finitos e escassos, cuja alocação adequada é o foco maior a se considerar. Como instância pública, é natural que o Ministério restrinja a incorporação irrestrita de novas tecnologias, visando à maior eficiência na alocação de seus recursos para beneficiar um número maior de pessoas, fundamentando-se na doutrina do Utilitarismo.

 

Por vezes, a incorporação de novos tratamentos demora demasiadamente. Nesse diapasão, considera-se o trabalho seminal de pesquisadores brasileiros, publicado no Journal of Global Oncology (Debiasi et al, 2017), onde se avaliou o impacto do atraso de oito anos na incorporação no SUS de um medicamento denominado trastuzumabe, destinado a pacientes com câncer de mama metastático HER-2 positivo, com relação à sua incorporação no ROL da ANS. A demora levou a um injustificável aumento no número de mortes nas pacientes do SUS em comparação com as da Saúde Suplementar, a despeito de o trastuzumabe já ser parte integrante da lista de medicamenos essencias da OMS reconhecendo seu uso na prevenção de mortes por câncer de mama no mundo.

 

A questão aqui não é avaliar as instâncias governamentais responsáveis pela incorporação de tecnologias de saúde, mas  se o profissional médico, trabalhando no SUS, em pleno exercício de sua prática e de seu livre-arbítrio, tendo o paciente como foco, deve ou não ter sua autonomia tolhida pelos ditames da instituição onde trabalha em prol de uma adequação às suas limitações e em detrimento do bem-estar do paciente, para o qual uma determinada intervenção diagnóstica ou terapêutica pode ser prescrita, se abstendo de prescrevê-la ou sequer de mencioná-la e desse modo, reduzir a pressão financeira sobre o paciente e/ou o sistema judiciário.

 

Obviamente a demanda de pacientes no SUS não cessa e gestores do sistema têm a responsabiliade de lidar da melhor forma que puderem com os recursos finitos com que contam e de que podem dispor. Os sistemas de regulação trabalham movimentando pacientes de instituições para outras, entre municípios e até entre estados, de maneira que os pacientes possam ser assistidos nas instituições mais equipadas e aparelhadas para lhes tratar as doenças. Por isso, via de regra não se espera que todos os hospitais sejam capazes de tratar todo e qualquer paciente, nem tampouco que qualquer médico prescreva ou peça quaisquer exames. Dependendo de onde trabalhem ou que especialidade exerçam, médicos estão acostumados a solicitar exames e prescrever conforme sua prática diuturna. Na eventualidade de um determinado exame ou tratamento se fazer necessário, será a experiência do próprio profissional que lhe orientará a levar a cabo a demanda, no pleno exercício de sua autonomia médica. Nesse raciocínio, não cabe nenhuma forma externa de constricção a limitar sua autonomia em solicitar quaisquer exames que se façam necessários, pois agem em prol do bem-estar de seus pacientes quando atuam como médicos.

 

Por outro lado, é sabido que os únicos médicos obrigados por lei a não agir sempre em benefício dos pacientes que atendem são os médicos peritos, por estarem a serviço do Juízo. Obrigados que são a relatar o que observam, não há relação médico-paciente nem sequer dever de sigilo quando realizam o exame pericial.

 

Em todas as outras situações, no entanto, o médico deve sempre ter o bem-estar do paciente à sua frente como objetivo máximo de seu trabalho. Para isso, ele pode e deve solicitar os exames diagnósticos e prescrever os tratamentos que julgar necessários. Caso eles sejam disponibilizados e ao alcance do paciente, nenhum problema. Caso não o sejam, cabe ao médico orientá-lo acerca do melhor caminho a se seguir, conforme os ditames da sua consciência, embasados sempre pela boa prática médica e sua experiência. Se esse caminho passar por solicitação de exames na rede privada, o médico não deve, sob nenhuma circunstância se abster de solicitá-los.

 

Exames especiais fazem parte do arsenal de um plantel de especialidades médicas. Muitas delas sendo desempenhadas por profissionais no âmbito do próprio SUS. E por vezes requerem exames importantes já solicitados pelos especialistas normalmente, mesmo que ainda não incorporados ao SUS. Nesses casos, é natural que o trabalho médico siga os ditames da instituição onde a especialidade exista. Limitações as há em qualquer lugar, bem como demandas incapazes de ser satisfeitas. Quaisquer discrepâncias ou eventuais problemas são apresentados, discutidos e endereçados internamente, ou seguindo os caminhos em uso no próprio sistema, não cabendo a este Conselho criar ou endossar mais restrições ou impor fluxos adicionais aos pacientes no sentido de resguardar outras instâncias governamentais, sob pena de, nesse processo, ao tentar impor limites à prescrição médica, prejudicar o acompanhamento de pacientes em todos os níveis do sistema, particularmente na alta complexidade, virtualmente inviabilizando por completo a própria existência de certas especialidades no serviço público.

 

Qualquer paciente assistido no SUS tem direito a acesso universal aos serviços de saúde, em todos os níveis de assistência, conforme os princípios da integralidade e da equidade, sendo seu direito ser informado sobre a sua saúde e sobre o potencial dos serviços de saúde a ele oferecidos. Não se concebe a supressão desse direito sob nenhuma circunstância, sob pena de se limitar o atuar médico aos limites oferecidos pela instituição, transformando o profissional médico em uma simples engrenagem. Por isso, o médico assistente, diante de um paciente que se beneficiaria da realização de determinado exame diagnóstico não disponibilizado pelo SUS, deve solicitá-lo. Não tem ele responsabilidade ou ingerência na sua incorporação ao sistema. Mas tem com relação ao paciente que assiste. E cuja melhora deve sempre pautar cada ato de sua prática. Não cabe ao médico limitar de antemão as opções acessíveis ao paciente, sejam elas realizar o exame por meios próprios ou recorrer à judicialização.

 

A simples ideia de se deixar de informar ao paciente sobre a possibilidade ou necessidade de se realizar este ou aquele exame diagnóstico só pelo fato de o mesmo não estar disponibilizado pelo SUS vai na contramão de tudo o que se entende por boa Medicina e, caso concretizada, torna o profissional passível de processo ético profissional por infringir os artigos 20 e 32, conforme citado acima.

 

DA CONCLUSÃO

O médico, no livre exercício de sua prática, deve sempre ter o bem-estar do paciente como objetivo maior, independentemente de onde atue, seja na esfera pública ou privada. Para atingir esse fim, deve agir em pleno exercício de sua autonomia conforme os ditames da boa prática médica e de sua experiência, além de bom senso, sem estimular expectativas irreais ou práticas desmedidas.

 

Ao trabalhar no SUS e observar a indicação de determinado exame complementar, necessário para elucidação de um diagnóstico ou acompanhar a evolução de um determinado quadro, cabe ao médico solicitá-lo para o benefício do paciente, independentemente de sua existência ou incorporação ao SUS, orientando os pacientes sobre os meios de acesso disponíveis para sua realização fora da instituição e cabe sempre ao paciente decidir o que fazer com as informações obtidas, conforme suas possibilidades.

 

O profissional médico não deve nunca omitir orientações necessárias ao diagnóstico ou tratamento do paciente, ou limitar a qualidade das mesmas aos limites conferidos pela instituição onde trabalha. Pois deixar de fornecer a orientação necessária ao paciente constitui-se em falha no dever de informação e infringência ao Código de Ética Médica.

 

Este é o parecer, S.M.J.

 

Rio de Janeiro, 26 de maio de 2022.

 

 

Antonio Abílio Pereira de Santa Rosa

Conselheiro Relator

 

 

Parecer aprovado na 400ª Sessão Plenária do Corpo de Conselheiros do CREMERJ, realizada em 26 de maio de 2022.

 

 

 

Referências:

 

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da união: Seção 1, Brasília, DF, p. 01, 20 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm Acesso em: 26 mai. 2022.

 

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de set. de 2018. Dispõe sobre o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União: Seção I, Brasília, DF, p. 179. 01 de Nov. 2018. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 Acesso em: 26 mai. 2022.

 

Debiasi et al, 2017. Patient's journey with HER2 positive breast cancer: difficulties in the access to treatment and new technologies in the Brazilian public health system. Braz J Oncol. 2020DOI: 10.1200/JGO.2016.005678. Disponível em: http://www.brazilianjournalofoncology.com.br/how-to-cite/127/en-US Acesso em: 26 mai. 2022.


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